27/03/2024

quando olhas para a vida, do lado de dentro do vidro, não entendes como ela é curta. como tudo passa e despassa tão velozmente... e cresces na iludida certeza de que és eterno, invencível, inacabável, permanente. mas a vida é ceifada como todas as coisas que nascem e crescem na terra. também a nossa vida é levada, colhida, devassada, estrupada, desfeita, assassinada, violentada, eviscerada, devastada, aniquilada. 

mais tarde ou mais cedo, terminamos. e quando terminamos, não há nada que nos traga de volta. somos pó e ao pó regressamos. e regressamos vazios, despidos, desprovidos de riquezas, desproprietados, como os sem-terra, a caminhar nas terras de barro vermelho num país de longe de aqui. somos todos sem-terra. todos sem lugar. somos lugar nos lugares dos outros. somos terra sem terra na terra dos outros.

somos quem somos porque estamos num determinado tempo e espaço. como uma flor num jardim. como uma árvore numa floresta. somos um fruto do contexto em que nascemos e em que aprendemos a ser. somos apenas mais uma peça da imensidão de uma construção e que, na verdade, quando desaparecemos, fazemos falta às peças a que estávamos ligados ou agarrados, mas a construção não cede um milímetro. não cai. não desfalece. só nós é que partimos. talvez as peças que ficam, aquelas a que estávamos ligados, percam uma parte de si mesmos pois as peças que se interligam carecem das partes das outras para serem. somos os lugares nos lugares dos outros. somos as terras nas terras dos outros. somos individualidade porque nos reconhecemos no colectivo. somos quem somos em parte por causa de quem nos faz ser. e por isso há muitas pequenas partes das peças que saltam da estrutura quando um de nós parte. e a triste verdade, é que todos partimos, eventualmente. 

passamos a compreender a finitude a que estamos condenados quando perdemos alguém que nos é mais significativo. aí, por vezes, agarramos a intenção de dar mais valor à vida. mais importância às restantes peças que nos agarram, a que nos agarramos... mas logo a vida volta a acelerar, volta a correr e de novo...de novo, voltamos a esquecer que, afinal, tudo terminará em breve.

depois é o corpo que nos volta a recordar, que nos revela o segredo...as dores que começam a assolar o acordar, a pele que se pinta de tempo e se enruga de medo, o corpo que se estende na dimensão das coisas lentas e aumenta ou diminui sem pedir licença, a velocidade que reduz todas as intenções de todos os movimentos, embora estejamos com o pé sempre no acelerador... a vida começa a ficar mais lenta. o prenúncio de que tudo vai, em breve, cessar. e metemos a cabeça dentro das areias que resvalam dos nossos pés e fingimos que não entendemos e voltamos a iludir a ilusão procurando todas as razões para nos sentirmos mais jovens, de novo. enganamos o corpo. mentimos por dentro, para dentro, seduzimos as peças interligadas e fingimos, teatralizamos, levantamos o pano da pantomima. pintamos os lábios e os cabelos e dançamos até de madrugada para esquecer as linhas que a pele insiste em esculpir nas mãos, no peito, no sorriso mais tímido da face. 

passamos a vida a fugir da morte e a morte passa a vida a nosso lado. a soprar palavras meigas, ou brutas, aos nossos ouvidos no auge da noite cerrada. a cerrar os punhos quando iludimos a vida. quando desperdiçamos tempo. quando não nos deixamos encantar pelas coisas que nos rodeiam. quando ignoramos as peças a que estamos ligados e que nos fazem ser quem somos. ela fecha os olhos e sofre com o nosso sofrimento. é gentil e conselheira no frio da noite. faz-nos recordar o motivo de estarmos por aqui. uma planta no jardim. uma árvore na floresta. uma peça do puzzle. uma realidade no plano imaginado de um qualquer autor. uma parte limitada da existência. uma partícula de pó. a morte também é cruel, nunca nos abandona. suspende-nos neste fragmento do tempo e limita-nos a vida, ou faz-nos viver demais, ou qualquer coisa de intermédio. 

passamos a vida a correr. 

um dia, muito em breve, tudo cessa de se mover. 

fica só o pó de nós sobre as peças que estavam à nossa volta.  

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