12/06/2015

tsel

Já não ouves o que eu digo. Já nem sabes muito bem quem eu sou, na realidade. Olho-te nos olhos e sei, como só se sabem as coisas que sabemos certas, que já não te lembras que dia é este que te corre sobre os dedos sujos. Nem o mês que delimita o tempo sábio.
Questionas, com a simplicidade dos simples, como se não tivesse qualquer importância, enquanto te treme o lábio inferior como só quem tem a certeza de estar a partir sabe fazer. A certeza de que se está a partir sem se saber parar. Sem se poder parar.
Os dias passam por ti seguros, apenas, por finos fios de imagens frustres e de sonhos conhecidos. Já não sentes o aroma que sobrevoa a tua pele nem o sabor do mar. Já não sabes em que corpo habitas, que espaço ocupas, que lugares são os teus. Olhas, com a terna sensação da queda infinita, o precipício que se abre sobre a imagem de ti e mergulhas sem medo. Como se pode temer o que não se sabe que se deve temer?
Hoje queria pegar no outono. Segurá-lo nas mãos. Verter as cores das folhas que ainda vão cair sobre a terra e ouvir cada uma a quebrar. Debaixo das minhas mãos. Debaixo dos meus pés descalços no frio da manhã. Queria pegar no que resta do outono e segurá-lo no lugar reservado às coisas mais sagradas.
Sabes, tenho o corpo plantado num leito de cardos e cada espinho se crava em mim pintado de violeta. Não podes fazer nada. Já não podes fazer nada para travar este caminho, para parar este pranto, para cessar esta tempestade aberta em nós. Terminou o tempo das coisas possíveis. Resta apenas tentar fugir. Tentar correr. Tentar fechar os olhos e fingir que tudo isto não passa de um sonho cansado.
Hoje sou eu que se esquece do dia. Comecei a desejar não saber, a ansiar esquecer, a legitimar cada infidelidade da minha memória como uma garantia que assegura a distância da tua solidão. Mas, sabes, nas minhas mãos o outono já não cabe. Tento segurá-lo em mim e, quando me olho, vejo e percebo tudo…tenho ainda as mãos vazias. Aqui só cabem os espinhos e a sujidade dos teus dedos. O silêncio que vai do lugar em que tu desapareces ao lugar em que desfaço, vai um quase nada que tem a dimensão de todos os desertos do mundo. Um deserto onde cabem todos os resquícios de todos os outonos que passaram por nós sem que tenhamos feito nada, resolvido nada, sem que nos tenhamos segurado a uma qualquer corrente, mesmo que fosse uma corrente feita de ar frio. Não te seguraste aqui. Seguiste como seguem as coisas que não pretendem, jamais, regressar.
Sei que não me queres aqui. Em verdade, sei que não me queres perto. E eu, por vezes, nos momentos em que as palavras e as ausências dilaceram toda a capacidade de inspirar, desejava quebrar-me como um vidro de cristal em milhares de estilhaços, tão infinitamente pequenos que não pudessem ser jamais vistos. Nesses momentos, perco mais uma parte do que restava de mim e olho para as mãos vazias sobre os pés frios e decido ficar. Decido permanecer como se ficar fosse o único lugar possível em mim. Ficar. Aqui, neste lugar reservado ao fim de tudo.
Talvez tu e eu não possamos mesmo ser mais do que isto. Dois copos de cristal quedados sobre a nudez da pedra fria. Talvez eu e tu não tenhamos mais lugar nenhum do que aquele que aprendemos a ocupar, sem ninguém se aperceber.
De facto, o lugar onde tu morres cada dia é o mesmo lugar exacto onde eu morro.

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