Já não ouves o que eu digo. Já nem
sabes muito bem quem eu sou, na realidade. Olho-te nos olhos e sei, como só se
sabem as coisas que sabemos certas, que já não te lembras que dia é este que te
corre sobre os dedos sujos. Nem o mês que delimita o tempo sábio.
Questionas, com a simplicidade
dos simples, como se não tivesse qualquer importância, enquanto te treme o
lábio inferior como só quem tem a certeza de estar a partir sabe fazer. A
certeza de que se está a partir sem se saber parar. Sem se poder parar.
Os dias passam por ti seguros,
apenas, por finos fios de imagens frustres e de sonhos conhecidos. Já não
sentes o aroma que sobrevoa a tua pele nem o sabor do mar. Já não sabes em que
corpo habitas, que espaço ocupas, que lugares são os teus. Olhas, com a terna
sensação da queda infinita, o precipício que se abre sobre a imagem de ti e
mergulhas sem medo. Como se pode temer o que não se sabe que se deve temer?
Hoje queria pegar no outono.
Segurá-lo nas mãos. Verter as cores das folhas que ainda vão cair sobre a terra
e ouvir cada uma a quebrar. Debaixo das minhas mãos. Debaixo dos meus pés
descalços no frio da manhã. Queria pegar no que resta do outono e segurá-lo no
lugar reservado às coisas mais sagradas.
Sabes, tenho o corpo plantado num
leito de cardos e cada espinho se crava em mim pintado de violeta. Não podes
fazer nada. Já não podes fazer nada para travar este caminho, para parar este
pranto, para cessar esta tempestade aberta em nós. Terminou o tempo das coisas
possíveis. Resta apenas tentar fugir. Tentar correr. Tentar fechar os olhos e
fingir que tudo isto não passa de um sonho cansado.
Hoje sou eu que se esquece do
dia. Comecei a desejar não saber, a ansiar esquecer, a legitimar cada infidelidade
da minha memória como uma garantia que assegura a distância da tua solidão.
Mas, sabes, nas minhas mãos o outono já não cabe. Tento segurá-lo em mim e,
quando me olho, vejo e percebo tudo…tenho ainda as mãos vazias. Aqui só cabem
os espinhos e a sujidade dos teus dedos. O silêncio que vai do lugar em que tu
desapareces ao lugar em que desfaço, vai um quase nada que tem a dimensão de
todos os desertos do mundo. Um deserto onde cabem todos os resquícios de todos
os outonos que passaram por nós sem que tenhamos feito nada, resolvido nada,
sem que nos tenhamos segurado a uma qualquer corrente, mesmo que fosse uma
corrente feita de ar frio. Não te seguraste aqui. Seguiste como seguem as
coisas que não pretendem, jamais, regressar.
Sei que não me queres aqui. Em
verdade, sei que não me queres perto. E eu, por vezes, nos momentos em que as
palavras e as ausências dilaceram toda a capacidade de inspirar, desejava
quebrar-me como um vidro de cristal em milhares de estilhaços, tão
infinitamente pequenos que não pudessem ser jamais vistos. Nesses momentos,
perco mais uma parte do que restava de mim e olho para as mãos vazias sobre os
pés frios e decido ficar. Decido permanecer como se ficar fosse o único lugar
possível em mim. Ficar. Aqui, neste lugar reservado ao fim de tudo.
Talvez tu e eu não possamos mesmo
ser mais do que isto. Dois copos de cristal quedados sobre a nudez da pedra
fria. Talvez eu e tu não tenhamos mais lugar nenhum do que aquele que
aprendemos a ocupar, sem ninguém se aperceber.
De facto, o lugar onde tu morres
cada dia é o mesmo lugar exacto onde eu morro.
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