29/06/2015

ars moriendi

Não compreendo o que me dizes.
Não consigo ouvir as tuas palavras. Agónicas, caquécticas, quase mortas. Não consigo ouvir nada do que dizes. Não entendo nada do que fazes, do que esperas, do que queres. Também estás cansada, Amor.
Procuro um ponto na janela, na parede, no armário, um ponto em que não encontre o teu olhar caído sobre a miséria da minha existência. Não quero que olhes para mim assim, percebes? Ainda não. Não precisas gritar, ainda estou aqui. Não te ouço, mas estou aqui. Não te quero ouvir mas ainda estou aqui.
Falo enquanto te olho nos olhos e parece que não compreendes o que te digo. Estou há tantos dias a dizer-te que desejo apenas descansar e te peço que me deixes descansar e tu, na tua agonia, não me deixas descansar. Espera. Peço-te. Ouve. Imploro-te. Não quero mais viver assim, percebes? Não posso mais viver assim. Entendes?
Fica em silêncio, apenas por um momento, e ouve o meu corpo a partir. Se me tocares nos dedos, sentes que o meu corpo está a partir. Estou a morrer e nada do que possas dizer vai alterar isso. Se me deres a mão em silêncio, tudo é mais fácil.
Talvez eu queira morrer, compreendes? Talvez eu esteja cansado de habitar este corpo doente, talvez esteja cansado de trazer o teu olhar sofrido caído sobre mim, a cobrir-me a alma, a desamparar-me a queda.
Escuta. Não consigo ouvir nada do que dizes. Sinto o meu corpo a desaparecer. Não sou senão a sombra do homem que fui, quer era ontem e que amanhã, antes que o dia nasça, vou deixar de ser. Tens de olhar para o meu silêncio se quiseres compreender o que se passa aqui, neste lado das coisas inteiras que acontecem fora de mim. Amor, tens de parar de falar para me ouvires. E o que eu não te digo é que estou demasiado cansado de continuar a morrer, dia após dia e que, na verdade, só preciso descansar. Só preciso que me ouças para podermos descansar.
Compreendes?

Sem comentários:

Enviar um comentário