19/01/2010

lento

Era quase de manhã quando se ouviram as primeiras gaivotas. Ele abriu os olhos. Lembrou-se, de frente para o rio, o lugar exacto onde estava. Saiu do carro. Lento. Como se o tempo todo fosse a devassa lentidão. Olhou o rio de frente e sentiu vontade de mergulhar. Despido. Descalço. Só a água a recordar-lhe a inevitabilidade da existência.
Estava febril. 19º cá fora. Sentia o suor escorrer frio na pele quente e tentava ignorar. Fazia por esquecer o lugar que o corpo agora ocupava nele para se concentrar apenas na vontade. Vontade de qualquer coisa. Vontade de ter vontade de sair dali. Vontade de ter vontade de ter outro lugar para onde ir. Onde chegar. Onde (se) depositar.
Fechou os olhos e voltou a sentir o corpo. Na febre. Frio. Quente. Alternado nos pólos de se ser e não se ser rigorosamente nada num tempo em simultâneo. Frio de novo. Intentou um grito que podia ter sido de dança, com os olhos ainda fechados. Pensou que talvez correr não fosse a melhor ideia pelo que permaneceu. Deixou-se cair no movimento lento de quem nada espera para além do que já foi.
Quando ousou abrir os olhos – na iminência da queda sobre a aresta do passeio sobre o rio – recordou-se do motivo pelo qual ali se encontrava naquele momento. Deixou a vontade para, sequer, o corpo dar um passo para trás. Olhou as gaivotas a desafiarem a lei da gravidade, cansadas na tentativa vã de encontrar peixe no rio e para se aquecerem.
Todos os movimentos lentos são frios.
Ouviu-as cantar e sentiu-as sussurrar...
...
Fechou os olhos.
Deu dois passos em frente.
Vestido. Febril. Descalço. Na vontade de partir para o lugar que vem depois.

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