sento-me com um copo numa mão e a miséria na outra. bebo de ambas as mãos como se sorvesse os restos da vida. reconheço os gestos de ingratidão que teimo em exacerbar cada vez que se me abre a boca para falar. queria poder permanecer num silêncio mudo e cego. deixar passar o tempo até que nenhuma parte do meu corpo ousasse mais mover-se. deixar que todos os cabelos quedem nos tons de cinzento, toda a textura da pele se mistifique no desespero das rugas. que toda a sabedoria me caia no colo e eu possa, de uma vez por todas, reconhecer que não fui digno de viver. bebo da miséria da minha existência os tragos de vida que deixei por ser vivida. bebo do copo para esquecer a miséria. bebo a miséria para abandonar o copo. e assim sigo, silencioso, pelo interior da noite.
23/09/2024
20/09/2024
Considerei a possibilidade de permanecer imóvel. Fingir que já não respirava. Ficar completamente parado.
Por vezes deixamos de respirar. São breves segundos mas deixamos de respirar. Talvez esses segundos sejam suficientes para que me deixes partir em paz. Para que não me vejas vivo e te esqueças de mim. Que olhes meu corpo lívido e me abandones na terra. Que retires essa sombra sempre tão escura de cima de minhas mãos e me deixes terminar, à minha maneira.
Será que permanecendo assim, cingido à ilusão da mortalidade, te poderei iludir? Será possível moldar a tua visão da realidade à minha pura intenção de me libertar? Será quebrar algum laço de fidelidade jurada em silêncio sofrido se te trair e insistir para que me deixes?
Penso que já não me importa o que sentes, o que pensas, o que precisas. Sempre foste água que precisava de terra para conseguir parar de correr numa tempestade frenética. Eu fui sempre terra que precisou de água para respirar. Até este momento. Agora andamos no reverso da nossa inteireza. Quebrámos partes. Fizemos um lugar de barro.
Por isso permaneço imóvel. Deixamos, por momentos, de respirar.
Deixo-te passar em torrentes incessantes de mar salgado numa beleza imperturbável.
Deixo-te ir.
Deixo-me ir.
18/09/2024
aGoNiA
vem.
espero por ti.
vem.
cobre meus olhos.
ata-me nas mãos.
vem.
despe-me da pele
com os dentes
até aos ossos.
vem.
deixa sair o grito. por dentro do beijo.
violenta-me como se me amasses.
oferece-me a dor.
vem.
cobre-me a boca.
pisa o sangue que me escorre do ventre
e pinta o resto do tempo.
vem.
rouba meu grito com a ponta dos dedos.
entrega-te à minha desventurança.
oferta-me a violência com que te alinhavo.
vem.
não espero por ti.
12/09/2024
emparedaste o caminho com fogo. não posso passar.
vedaste meus lábios com gritos. não posso falar.
pintaste minhas asas com crude. não posso voar.
ataste-me as mãos ao cimo. não posso tocar.
quebraste os galhos e as minhas pernas. não posso sustentar.
roubaste-me os segredos com facas. não posso sonhar.
incendiaste a porta com indiferença. não posso sair.
devastaste-te a promessa na ausência. não posso ficar.
olhaste as sombras nos olhos. viste-me desaparecer.
11/09/2024
04/09/2024
Lambi a ferrugem dos grilhões que arrastas dentro da noite segregada a ouvidos adivinhadores
tenho a boca a saber ao ferro
a alma a saber a miséria
sinto-te na falta
tenho-te em falta mas não tenho falta de nada de ti
tenho os dedos a saber a tempo e a desventurança
o sexo a gritar saudade e a secar por dentro da desesperança
a pele a queimar inteira a poesia da incerteza e a cobrir o vazio do vento frio da serra triste.
tenho galhos secos em lugar das mãos
ferrugem no lugar do sangue
amarras no lugar das lágrimas
pudor ao invés de amor.
Lambi a ferrugem do tempo e fiquei parada.
procuro formas de regressar às formas e parece que tudo foge dos dedos, dos galhos, do sangue enferrujado, do silêncio dos gritos contidos, das desventuranças da incerteza de saber sentir do lado certo da alma.
Talvez encontre o caminho de volta ao vento que sopra de feição às ondas e às folhas. ou talvez permaneça somente assim, a arrastar-me quieta no interior da noite.
03/09/2024
Fiquei à espera que chegasses.
O dia inteiro. Que chegasses inteiro.
Fiquei na espera que regressasses com o tempo e me explicasses o sentido da vida.
Queria ouvir-te rir da estupidez do mundo, hoje, enquanto aguardavamos a luz do cair do sol. Talvez seja aquilo que queda, o que traz sentido ao que se sustém. Se não entendermos a fragilidade da sustentabilidade, jamais poderemos compreender a vida.
Talvez tenha sido essa a derradeira lição. Aprender que as coisas que caem, que desaparecem, são o arquétipo que prova o sentido da existência.
Pergunto-me, ainda assim, porque nos recusamos a aprender?
Porque insistimos em desafiar as leis da gravidade, num permanente complexo de deidade?
Seremos todos, no fundo, apenas cobardes disfarçados de heróis? Ou heróis disfarçados de cobardes?
Seremos apenas sombras, puras sombras de tudo o que poderiamos ter sido.
Quando voltaremos a brilhar?
Fiquei à espera que chegasses. Para saber. Para ouvir. Para entender.