E o balcão encontrou todo o tacto das minhas mãos como se fosse uma memória vívida que assola quando menos se espera e não sabemos de onde vem e se nos pertence ou se somente sobrevém simplesmente por ela ter entrado na sala – trazias o cheiro a cidade; à hora de ponta e à transpiração do metro; a tua cara escorria outras caras cansadas, gastas, sofridas, sorridentes, crentes, imaginadas, suicidas, indecisas, sonhadoras, perdidas ou simplesmente empalidecidas; os teus braços tombados ao longo da tua fisionomia direita até à ponta dos teus dedos (só hoje te vi tão alta, tão mais alta do que eu; talvez porque somente hoje te vi); os teus pés molhados, sim, da chuva, seria da chuva?, soltavam gotículas incertas e indefinidas pela sala. Não te senti sair hoje de manhã, pensei, mas hoje de manhã é já tão longe, tão distante de nós, tal como a distância que vai de mim, do balcão, até ti, aí, na sala: estás aí, não estás? Ou imagino que estás? Sim, estás, estás enquanto aqui estou: não te decides em ir embora, regressas sempre e eu não me decido ficar, estou sempre de partida. Tens os pés molhados e o seco desaparece pouco a pouco, seria da chuva?, os teus pés molhados e as tuas idas ao Alentejo. Dizias que tinhas lá família. Vim a descobrir anos mais tarde que és órfã; os teus pés molhados e a sala a contar com a tua presença. Coloco as mãos no balcão e a solidão por cima do balcão sujo. (cont.)
Sem comentários:
Enviar um comentário