26/05/2024

Sento-me, a meu lado. Fico a olhar-me e tenho dúvidas sobre se este corpo será verdadeiramente o meu. Já não sei bem reconhecer se é este o meu contorno, se esta palidez é de minha pele ou de meu devaneio, se este corpo é do meu fogo ou do meu abismo, se estes gestos são imutáveis ou ensandecidos. Já não guardo muitas certezas. Sei apenas, neste momento de agora, que enquanto estou lado a lado comigo mesmo, respiro labaredas, rasgo o estômago com os dentes, engulo palavras em brasa, cravo as garras corcomidas na pele desalentada, conto os gritos inaudíveis que me implodem por dentro...um, dois, cento e trinta e nove, mil...

Deixo-me permanecer sentado. Olho em frente. Viro-me de costas. Dispo as roupas e vejo que tenho a pele a arder. Afinal as palavras começam a sair do silêncio dos gritos e as brasas incendeiam o caminho. Sinto o sabor do desalento na ponta dos dedos em cinza. Reconheço o aroma de fel na boca amargurada. Aperto o cilicio no peito. Um pouco mais, até escutar a prece dos ossos. Mastigo a culpa e pecado. Bebo o sangue. Contenho as lágrimas.  Deixo que o fogo tome conta do resto. 

Fecho os olhos.

Fico sentado.

Estou virado de costas para o meu corpo a arder.


24/05/2024

Há qualquer coisa a arrancar-me a pele. Quando olho o espelho, qualquer reflexo, em qualquer superfície que me veja, já não encontro partes de mim. 

Há algo que me fere longitudinalmente ao corpo inteiro e assisto, impotente, ao desabrochar sádico das chagas que me consomem e de onde emergem, triunfantes, as vísceras da minha insustentabilidade. 

A ausência esmaga-me a traqueia e as palavras ficam todas mudas, cegas, surdas, quebradas.

Começo a tentar escrever o que se passa em mim e são os dedos que me caem sobre o abismo (des)feito a tinta. As palavras estão partidas em pedaços minúsculos que não consigo ver. São os dedos, os meus, que as perseguem e acabam por se perder das mãos. 

Que outras partes de mim estarei a perder? Há coisas que não reconheço e que me arrancam a pele, me descarceram, me desossam e me pelam sem que o consinta, sem que o entenda, sem que o possa fazer parar.

Penso que estou próximo de perder a fé. Começo a perder as partes do corpo. As partes de mim. 

Assisto, na primeira fila, à minha própria decadência. Sou eu no palco, em fragmentos. Sou eu o meu próprio público e não há nada mais que possa dizer. As palavras, os dedos, a tinta, tudo me abandonou.

Há qualquer coisa a arrancar-me pele. 

Há qualquer coisa a terminar em mim. 







23/05/2024

queria 

ter

podido

dizer

todas

as 

palavras

que

suavam

na

lingua

minha

foram

só 

as

balas

tudo

o

que 

te 

deixei

dito

dentro

da

tua

boca.