03/01/2019

cOMo DormEm os pOmbOs

sento-me numa aresta da noite para saber o frio inteiro. tenho despidos os pés e as mãos.
sento-me no princípio da noite. a olhar o espaço que vai de mim até ao lugar em que finda o mundo. 
curvo-me sobre mim mesmo a contemplar a imensidão do vazio que subsiste dentro de cada aproximação à plenitude.
é como se faltasse sempre algo mais. qualquer coisa mais. uma inquietante imperfeita e interminável insaciabilidade.

cubro a pele das costas com as asas cansadas. escuras. feitas de pó e de luz. feitas de tudo e de nada. dos princípios e das coisas que terminam. das causas e das consequências. das feridas e dos sorrisos. asas cansadas mais ainda vivas, a pulsar por dentro, a saberem tudo por dentro.

oiço o canto da noite e permaneço imóvel, a perscrutar o sono, a evitar a vigília, a escutar-me, com todo o meu corpo curvado sobre as asas inteiras, imóvel, com os pés despidos a tocarem o arame, imóvel, em suspenso, apenas sobre um fino fio de tempo, sem temer a queda aberta sobre a possibilidade permanente de um abismo incomensurável.

sento-me como se navegasse o rio agora. suspenso no frio da madrugada. a evitar tocar as asas.em segredo. em silêncio. absolutamente imóvel como um pombo, sobre os arames da vida, coberto em si mesmo. impenetrável. seguro. como se nada pudesse, em momento algum, desfazer a sua serenidade cansada sobre as asas escurecidas na noite. 

é como dormem os pombos. assim permaneço eu. suspenso sobre um fino fio de vida. 

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