24/10/2024

Pego no vidro com as duas mãos.  

Parto-o em duas partes desiguais. 

Com a mão direita, seguro a parte mais larga do vidro e rasgo a mão esquerda.  Até chegar aos ossos. 

Com a mão rasgada, seguro o lado mais estreito da segunda parte do vidro e enterro-o na minha mão direita. 

Carrego os vidros nas mãos desfeitas e caminho até à entrada do rio. Sujo a ferrugem ocre do lugar de embarque e acinzento o olhar do rio sobre meu sangue escuro. 

Entro no navio que navegará a imensa vastidão do oceano durante a noite velejada ao sabor do outono triste. 

O mar entoa uma melodia azul. Uma melancolia inevitável. 

Fecho os olhos para escutar as ondas e o escorrer de mim. 

Quando chegar a meio do oceano, estarei exangue.

Quando atracar, o vidro estará inteiro.

16/10/2024

o vazio não segue com quem parte.

permanece sempre com quem fica.

Sa.cA.Na.

talvez 

seja

o momento 

este 

em que partes

o momento

exacto

no qual

o esboço se consubstancia em forma

a palavra se molda de silêncio 

o olhar se declara em certeza

o tempo se revela irrecuperável 

a agonia liberta suas asas

talvez seja

esse

o momento

preciso

em 

que 

eu me desfaço em invisíveis fragmentos de desespero

me desato em nós de argumentos esquálidos 

e reconheço 

na cegueira impura das minhas mãos atadas

o tamanho inteiro do irremediável que habita a minha impossibilidade.


04/10/2024

Há um homem que desce a rua da mesma forma que sempre desceu a rua. Anos seguidos. Mas agora fala em voz alta.
Há um taxista que para o carro e fica, ali, parado. Só parado. Mais nada. Todas as noites. Parado. 
Há doentes que saem a pé depois do tratamento e atravessam a noite da rua. Desconheço o lugar de onde encontram a força para andar. Talvez não tenham alternativa. Talvez estejam sós. Depois de se terem desfeito do sangue numa qualquer máquina. Atravessam sozinhos a noite doente. 
Há uma chuva timida que vai caindo e embaraça. Uma chuva que enevoa os olhos. Embacia os vidros dos carros. Não lava nada e fica a latejar sobre a pele que ainda tem sabor de verão. Uma chuva que não chove, será chuva?
Há baratas a correr desorientadas de folha em folha. Para longe dos pés.  Para perto do lixo. Para junto dos restos que sobram dos restos. Arrastam o que resta de uma asa morta de um pombo morto e parecem fazer um festim de morte. Uma asa morta. Um pombo morto. Insectos que vivem de morte. 
Uma mulher passeia o cão e olha em frente. Sempre em frente. Nunca olha para baixo. Não olha para trás nem atravessa olhando para os lados. Segue. Em frente. Como se não houvesse nenhuma alternativa possível. Quem olha apenas em frente, conseguirá ver?
Numa varanda há vozes que se riem. Não têm cara, apenas contornos feitos de vida e de movimento. Há música que salta detrás das janelas abertas e recordam anos idos de juventude. Riem de palavras vivas e ignoram o mundo. Um lugar sem conflito. Pode haver um lugar no mundo, esta noite, onde não haja conflito?
Há um aroma a jasmim na rua. Na varanda do vizinho. Os pássaros dormem na varanda do vizinho. Presos na gaiola fechada. A aguardar o nascer de novo dia. Não cantam agora. A noite canta sozinha. Porque perdem os pássaros a voz e o voar com o cair da noite?
Um gato preto atravessa o alcatrão da estrada e navega a solidão profunda da noite. Procura restos de comida. Procura gestos de vida. Talvez deseje afecto. Uma mão quente que o cubra de esperança.  Ou talvez não.  Os olhos amarelos a brilhar e a contrariar a escuridão. Os gatos são o contrário da escuridão?
Há um outro homem que parece um gato. Também tem os olhos abertos na noite enquanto procura lugar para deixar dormir o corpo. Nas arcadas dos prédios. A urinar de encontro a um lugar esconso. Talvez ninguém veja. Eu vi. Talvez mais ninguém veja. Terá uma mão, comida, chuva, coragem. É preciso coragem para dormir na noite aberta,  sem tecto. O que pensa um homem que não tem um tecto debaixo da noite?
Há pessoas que sairam e talvez não regressem a casa. Pessoas que regressaram e talvez jamais possam sair. Pessoas que não sairam. Pessoas que circulam a caminho de aqui ou de ali. Que trabalham nos segredos. Que preparam o dia. Que velam pelo resto dos que dormem, descansados. Há quem durma descansado?
Há portas fechadas e janelas abertas. Carros e aviões que não param de avançar.  Como o tempo, sabes. Como o tempo. O tempo que avança e a impossibilidade do recuo. Como a mulher que só olha em frente.
Há um homem que desce a rua da mesma forma como sempre desceu a rua. Mas agora fala sozinho.
Eu também desço a rua. A mesma rua. Há muito anos. Estarei eu a falar com quem?


02/10/2024

houvesse forma de te libertar 

                                         arrancava as asas aqui mesmo

houvesse forma de te conter 

                                         faria de meu corpo barragem de ferro e betão

houvesse forma de te salvar 

                                         tornar-me-ia definitiva condenação

houvesse forma de te suster 

                                          cederia toda a respiração 

houvesse forma de te sangrar a gangrena 

                                           faria de mim chaga eterna

houvesse forma de te parar o fogo 

                                            seria sarça

houvesse uma forma de te reescrever 

                                             derramar-me-ia em tinta

se houvesse forma 

                            qualquer forma

se

        houvesse

de bom grado     

                        ta daria.

01/10/2024

Podiam dar teu nome à próxima tempestade. Um fenómeno atmosférico não particularmente raro mas incomum, que se encontra de olhos fechados em lugares obscuros ou de olhos abertos na claridade do mundo. 

És a serenidade envolvente das areias das estepes africanas. A lânguida sensualidade do arder da pele e da boca, dos dedos e dos olhares, do tudo e do nada. És o grito gélido dos fiordes do norte. Água feita gelo, feita montanha, feita impossibilidade. Distância e austeridade tecidas da mais abissal profundidade do azul contido à força na feroz atrocidade do ser tempo.

És o vento morno que embala a ardência inebriante da vastidão cheia de vazio no deserto. És lamentação tornada, divinamente, em muro de papel e pedra, de esperança e desventurança, de crença e de perdição.  És a chuva torrencial que devasta vales e casas, lugares e memórias,  encontrando sempre o caminho da água. O caminho que regressa, inevitavelmente, ao lugar primordial. Onde tu começas e onde só podes terminar.

És viagem que está sempre a partir. Viagem que se incendeia até conseguir chegar. Viagem que viaja para encontrar tanto quanto para se perder. Viagem que não sabe onde terminar. Viagem que regressa ao princípio para poder repousar. Viagem que nunca se conclui. Que não satisfaz. Que deixa espaços por preencher. 

Imagino tua sombra a calcorrear as ruas das cidades na magnificência da cor que só o começo do outono traz no sol. 

Cinematografo tua sombra como uma folha de plátano que cai, pela noite fora, do ramo mais alto. Dança com a gravidade, beija o luar, até que o chão lhe toca, com dedos finos e envelhecidos, e o vento a empurra, sem questionar, ainda que com a mais leve das brisas, para longe da copa da sua árvore...  Assim caminhas tu. De braço dado com a vontade, de olhos cravados no desejo, as mãos abertas para o sonho, os pés voltados no sentido da fuga.

Preenches a possibilidade de um futuro nas noites com um corpo outro desnudado que inala o possível e exala o impossível. Que respira futuro e padece de abandono. Que te segura na ponta dos dedos e não ouve as palavras escritas nas cinzas. 

Tu não respiras de noite. Olhas esse corpo escolhido que deitaste ao lado do teu e viajas por dentro de ti mesmo. E queres ficar tanto quanto precisas de partir. E queres partir tanto quanto precisas de ficar. 

E terminas a viagem com a bravura de um soldado que parte no desconhecido e enfrenta a bruma, os canhões, os silêncios e a devastação, a saudade e a (des)consciência de si.

E regressas, a arder, a arrastar cinzas, a recompor desiginios, a redesenhar desejos, a reconstruir as paredes desfeitas, a guerrear contra a guerra. 

E chegas ao teu lugar de mar para cessar o fogo,  reencontrar o caminho e, com a paciência impaciente de um poema, atenuar a emergência do que te falta ser. 

Talvez a tempestade que acontece em ti possa fechar os olhos na obscuridade desse lugar e, ainda assim, vislumbrar os rasgos de claridade.